O Decreto nº 12.534, de 25 de junho de 2025, recentemente editado pelo Governo Federal, promoveu alterações relevantes nas normas de concessão e manutenção do Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS). Embora traga avanços pontuais, como a ampliação de algumas exclusões no cálculo da renda familiar, o decreto incorre em grave equívoco ao reincluir os valores oriundos do Programa Bolsa Família na composição da renda familiar per capita, o que representa uma afronta à lógica constitucional da assistência social como direito fundamental autônomo e não contributivo, com consequências práticas de exclusão de milhares de beneficiários em situação de extrema vulnerabilidade.
1. Violação ao Princípio da Proteção Integral e à Finalidade da Assistência Social
Nos termos do art. 203, inciso V, da Constituição Federal, a assistência social deve ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é expressão direta desse mandamento constitucional, destinado a garantir mínimos existenciais para idosos e pessoas com deficiência em situação de pobreza extrema. A inclusão do valor do Bolsa Família – que também se destina a mitigar vulnerabilidades socioeconômicas – no cálculo da renda familiar viola a natureza complementar e cumulativa dos programas assistenciais, prejudicando justamente os que mais precisam de suporte do Estado.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já consolidou entendimento nesse sentido. O REsp 1.112.557/MG (Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho) fixou que rendas de caráter alimentar e assistencial, como o Bolsa Família, não devem ser computadas na aferição da renda familiar para fins de BPC, justamente para não esvaziar a efetividade da proteção social constitucionalmente assegurada.
2. Risco de Exclusão e Agravamento da Pobreza
O efeito imediato da reinclusão do Bolsa Família como componente da renda familiar é o afastamento automático de famílias do direito ao BPC, mesmo quando estas permaneçam em situação de miséria. Trata-se de uma medida regressiva, incompatível com o princípio da proibição do retrocesso social, cuja aplicação é corolário da cláusula do Estado Democrático de Direito e da eficácia dos direitos sociais fundamentais, como já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347/DF, Rel. Min. Marco Aurélio).
A análise técnica evidencia o impacto: com mais de 6,2 milhões de beneficiários em 2025 e projeções de ampliação para 14,1 milhões até 2060, a modificação imposta pelo Decreto nº 12.534/2025 poderá interromper a trajetória ascendente de cobertura da política de assistência social, excluindo pessoas que dependem exclusivamente do BPC e do Bolsa Família para sobreviver.
3. Insegurança Jurídica e Inconstitucionalidade Material
A revogação do §2º, inciso II, do art. 4º do Decreto nº 6.214/2007 – que explicitava a exclusão do Bolsa Família do cômputo da renda familiar – não apenas contraria o entendimento jurisprudencial e doutrinário consolidado, como afronta os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da vedação à proteção insuficiente.
Além disso, ao alterar de maneira substancial os critérios para elegibilidade do BPC por meio de decreto presidencial, o Poder Executivo avança sobre competência legislativa do Congresso Nacional, o que pode configurar usurpação de competência, nos termos do art. 48 da Constituição Federal. A matéria, por tratar de direitos sociais de prestação positiva, demanda edição de lei em sentido formal, sob pena de inconstitucionalidade material e formal do novo decreto.
4. Inversão da Lógica da Proteção Social
Ao vincular dois benefícios assistenciais – Bolsa Família e BPC – como se fossem mutuamente excludentes, o decreto subverte a lógica da proteção social. Ambos os programas têm funções distintas, ainda que complementares, e não devem se anular mutuamente. O Bolsa Família visa combater a pobreza por meio da transferência de renda condicionada a ações em educação e saúde; o BPC, por sua vez, é um direito constitucional de prestação continuada e incondicional a pessoas em condições de hipervulnerabilidade.
Permitir que o valor de um benefício assistencial (Bolsa Família) sirva de base para negar o acesso a outro direito (BPC) é inverter a lógica do Estado Social e operar um mecanismo de exclusão disfarçado de critério de elegibilidade.
5. Impactos Discriminatórios e Desproporcionais
A medida impacta de forma desproporcional pessoas com deficiência e idosos em situação de miserabilidade – grupos protegidos por tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), que possui status de emenda constitucional (nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal). A interpretação da legislação infraconstitucional, portanto, deve ser compatível com os tratados internacionais, sob pena de configurar violação de compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.
É Necessário Revogar ou Reformular o Decreto
Diante de todo o exposto, é possível concluir que o Decreto nº 12.534/2025 incorre em erro jurídico, político e social. Ao tornar mais restritivos os critérios de acesso ao BPC com base em parâmetros que desconsideram a natureza assistencial do Bolsa Família, o governo compromete a eficácia do direito à assistência social, promovendo exclusão disfarçada de racionalidade fiscal.
Ainda que a medida tenha sido justificada sob o argumento de contenção de gastos, é imprescindível lembrar que os direitos sociais não podem ser sacrificados no altar do ajuste fiscal. O BPC é um instrumento constitucional de justiça social, e não um privilégio assistencial. O governo, portanto, deve rever com urgência a redação do decreto, restabelecendo a exclusão do Bolsa Família da base de cálculo da renda familiar e reafirmando o compromisso do Estado com os valores constitucionais da solidariedade, proteção à dignidade humana e justiça social.
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