PGV 2026: isenções que não isentam; travas que não protegem; a máquina de desigualdade do IPTU em São Paulo
A Câmara Municipal de São Paulo
aprovou em primeiro turno, no dia 8 de outubro de 2025, o Projeto de Lei
1130/2025 que atualiza a Planta Genérica de Valores (PGV), estabelecendo novas
bases de cálculo para o IPTU a partir de 2026.
A proposta, que recebeu 28 votos favoráveis e 19 contrários, traz impactos
diferenciados entre os distritos da cidade, com especial gravidade para as
regiões periféricas como Anhanguera.
Distrito
Anhanguera: Vulnerabilidade Social e Alto Impacto Tributário
O distrito de Anhanguera, localizado
na zona noroeste da capital, exemplifica as contradições da proposta de
atualização da PGV. Com uma população de 75.360 habitantes e
densidade populacional de apenas 22 hab/ha, é uma das regiões de menor
densidade urbana da cidade. O distrito se caracteriza
por alta vulnerabilidade social, figurando no grupo 7 de 8 grupos possíveis no
mapa de vulnerabilidade social, onde predominam famílias com baixa renda e
escolaridade[4].
Características socieconômicas críticas de Anhanguera:
·
Expectativa de vida média de apenas 59 anos, comparada aos 82 anos
do Jardim Paulista - uma diferença de 23 anos
·
IDH de 0,774, classificado como médio, ocupando a 82ª posição
entre os distritos paulistanos
·
Alta concentração de famílias com renda até 3 salários mínimos
·
Deficiências significativas em infraestrutura urbana e serviços
públicos
Impacto
Desproporcionalmente Alto do Reajuste
Anhanguera está entre os distritos
que sofrerão os maiores impactos percentuais na atualização da PGV. O valor do metro quadrado de terreno passará de R$ 376
para R$ 573, representando um aumento de 53,6%
- o quinto maior entre todos os 96 distritos da capital.
Comparação regional revela desproporção:
·
Anhanguera: aumento de 53,6% (valor baixo de R$ 376/m²)
·
Jardim Paulista: aumento de 64,2% (valor alto de R$ 11.723/m²)
·
Distritos centrais consolidados como República: apenas 12,6% de
aumento[3]
Discrepâncias
Territoriais da Atualização
A análise da nota técnica da camara
de vereadores revela padrões problemáticos na distribuição dos reajustes:
Regiões de alta renda com grandes aumentos percentuais mas
alta capacidade de pagamento:
·
Jardim Paulista: 64,2% (R$ 11.723 → R$ 18.943/m²)
·
Itaim Bibi: 57,8% (R$ 7.525 → R$ 11.998/m²)
·
Pinheiros: 57,2% (R$ 8.208 → R$ 12.925/m²)
Regiões periféricas com aumentos desproporcionais à
capacidade contributiva:
·
Anhanguera: 53,6% (R$ 376 → R$ 573/m²)
·
Jaraguá: 52,9% (R$ 517 → R$ 780/m²)
·
Perus: 48,9% (R$ 434 → R$ 639/m²)
·
Jaçanã: 43,4% (R$ 862 → R$ 1.242/m²)
Consequências
Sociais da Política Tributária
A atualização proposta contradiz
princípios de progressividade tributária ao impor aumentos proporcionalmente
similares entre distritos com capacidades contributivas drasticamente
diferentes. Enquanto moradores do Jardim Paulista têm expectativa de vida de 82
anos e alta renda, residentes de Anhanguera enfrentam expectativa de vida 23
anos menor e concentração de pobreza.
Impactos específicos para Anhanguera:
·
Famílias de baixa renda enfrentarão pressão tributária
desproporcional
·
Risco de gentrificação forçada em área já carente de
infraestrutura
·
Agravamento das desigualdades territoriais existentes
Medidas Mitigatórias Propostas
O projeto inclui algumas
contrapartidas para amenizar os impactos[9][10]:
·
Ampliação da isenção total para imóveis até R$ 150 mil (antes R$
120 mil)
·
Isenção para proprietários únicos com imóveis até R$ 260 mil
(antes R$ 230 mil)
·
Travas de reajuste: máximo 10% ao ano para residenciais e 12% para
comerciais
·
Isenção para imóveis em ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social)
até 2030
Críticas à Metodologia de Cálculo
A oposição na Câmara Municipal,
liderada pela bancada do PT, criticou a metodologia da PGV por beneficiar o
centro expandido em detrimento das periferias. Segundo análise partidária, a variação acumulada do
patrimônio imobiliário da periferia será de 137% entre 2021-2026, enquanto no
centro será de 83% no mesmo período.
Necessidade de
Tramitação Responsável
O projeto ainda deve passar por
audiências públicas e segunda votação antes da sanção do prefeito Ricardo Nunes. A complexidade dos impactos regionais
demanda análise cuidadosa dos efeitos sobre a população mais vulnerável,
especialmente em distritos como Anhanguera que combinam alta vulnerabilidade
social com significativo aumento tributário proposto.
A atualização da PGV, embora
necessária para adequar a tributação à realidade do mercado imobiliário,
deveria considerar com maior rigor os impactos diferenciados sobre as
populações periféricas, garantindo que a modernização tributária não aprofunde
as já graves desigualdades territoriais da capital paulista.
Da insuficiência das medidas mitigatórias propostas
Insuficiência material das faixas de isenção
As
isenções totais até R$ 150 mil e a isenção ao proprietário de único imóvel até
R$ 260 mil não refletem o patamar atual dos valores venais na cidade, sobretudo
após a atualização robusta da Planta Genérica de Valores. Em ampla parcela dos
distritos periféricos, inclusive em áreas com padrão construtivo modesto, os
valores de referência ultrapassam esses tetos, o que expõe famílias de baixa
renda ao efeito tributário sem a devida proteção. Há, portanto, descompasso
entre o desenho normativo e a realidade de mercado, o que contraria a
progressividade material do imposto.
Travas de reajuste ainda elevadas frente à renda e à
inflação
Os
limites máximos de 10 por cento ao ano para imóveis residenciais e de 12 por
cento para não residenciais permanecem altos quando cotejados com a evolução da
renda domiciliar per capita nas bordas urbanas e com os índices de inflação de
serviços essenciais. Em distritos com maior vulnerabilidade social, qualquer
patamar de dois dígitos na variação anual do IPTU tende a produzir efeito
regressivo, comprimindo o orçamento de famílias que já destinam proporção
elevada de renda à moradia e ao transporte.
Proteção insuficiente e temporária nas ZEIS
A
isenção em Zonas Especiais de Interesse Social até 2030 tem escopo temporal
curto diante da magnitude dos reajustes e não alcança domicílios de baixa renda
localizados fora de perímetros ZEIS, embora sujeitos a dinâmica semelhante de
valorização cartorial. A seletividade territorial do benefício, somada ao prazo
exíguo, reduz a efetividade da medida para prevenir deslocamentos forçados e
processos de gentrificação.
Ausência de calibragem por vulnerabilidade e renda
As
contrapartidas carecem de um mecanismo robusto de focalização que considere
indicadores objetivos de vulnerabilidade, como cadastro em programas sociais,
renda familiar, composição domiciliar e deficiência de infraestrutura urbana.
Sem esse recorte, a política tende a beneficiar de forma indistinta imóveis com
maior capacidade contributiva, ao mesmo tempo em que deixa descobertas famílias
em condição de pobreza tributária.
Risco de iniquidade intersetorial e territorial
Ao
replicar percentuais uniformes de limitação anual, a proposta ignora
assimetrias entre regiões de alta renda e periferias urbanas. O resultado
previsível é o agravamento de desigualdades, pois o mesmo percentual de
reajuste incide sobre bases econômicas e capacidades de pagamento
incomparáveis, afetando mais intensamente quem tem menos renda disponível.
Ausência de fase de transição escalonada
Não
se prevê fase de transição plurianual com degraus de transição suaves e
previsíveis, combinando limite nominal absoluto em reais e limite percentual,
para amortecer impactos súbitos. Em especial, nos distritos com salto de valor
do metro quadrado, a inexistência de transição escalonada torna o choque fiscal
desproporcional.
Insuficiência de mecanismos de reparo e revisão
Inexiste
cláusula de revisão obrigatória com métricas de impacto distributivo,
audiências públicas setoriais e gatilhos automáticos de correção caso os
indicadores de onerosidade sobre famílias de baixa renda ultrapassem patamares
prudenciais. Na prática, a correção de rumo fica dependente de nova iniciativa
legislativa, o que é lento e incerto.
Fragilidade do desenho para pequenos negócios periféricos
O
teto de 12 por cento para imóveis não residenciais atinge de forma sensível
pequenos comércios e serviços de bairro que operam com margens reduzidas. Sem
um regime diferenciado para micro e pequenas atividades localizadas em áreas
vulneráveis, a medida pode desestimular o comércio de proximidade e o emprego
local.
Efeitos sobre adimplência e litigiosidade
A
combinação de bases venais reajustadas com travas elevadas tende a elevar
inadimplência e contencioso tributário, transferindo custo administrativo à
municipalidade e insegurança às famílias. A ausência de instrumentos de
diferimento com preservação do desconto por pontualidade e de programas
permanentes de renegociação agrava o problema.
Propostas de aprimoramento normativo
a.
Elevação e indexação social das faixas de isenção, com atualização anual
automática por indicador de renda e por variação do valor venal mediano por
subprefeitura.
b.
Introdução de desconto progressivo vinculado à renda familiar e à condição de
único imóvel, com aplicação automática para inscritos no Cadastro Único e para
idosos e pessoas com deficiência de baixa renda.
c.
Redução dos tetos de variação anual para 5 por cento em residenciais e 7 por
cento em não residenciais situados em áreas de alta vulnerabilidade, com
cláusula de prevalência do menor entre o percentual e um teto nominal em reais
por metro quadrado.
d.
Transição plurianual de quatro a cinco exercícios nos distritos com saltos
percentuais acima da mediana, com degraus de aplicação gradativa da nova base
de cálculo.
e.
Regime diferenciado para micro e pequenos estabelecimentos nas periferias, com
limitação adicional e possibilidade de crédito tributário condicionado à
manutenção de postos de trabalho locais.
f.
Isenção integral para imóveis de interesse social fora de ZEIS que atendam
critérios de renda e tipologia construtiva, enquanto persistirem indicadores de
déficit de infraestrutura essencial.
g.
Programa permanente de parcelamento com juros reduzidos, preservando desconto
por adimplência e com trilha de educação fiscal, para prevenir inadimplência
crônica.
h.
Cláusula de avaliação e revisão anual obrigatória, com indicadores de impacto
distributivo, participação social e transparência ativa por distrito.
É preciso ir a luta contra essa medida
Conclui-se que as medidas anunciadas, tal como
estruturadas, são materialmente insuficientes para neutralizar a carga
tributária adicional decorrente da atualização da PGV em territórios de baixa
capacidade contributiva. As faixas de isenção não refletem os valores venais
correntes; as travas anuais de 10 por cento para imóveis residenciais e 12 por
cento para não residenciais permanecem elevadas quando confrontadas com a renda
disponível nas periferias e com a inflação de serviços essenciais; a isenção
restrita às ZEIS, com horizonte até 2030, revela escopo territorial e temporal
limitados; inexiste focalização robusta por renda e vulnerabilidade; não há
transição plurianual escalonada para amortecer saltos de valor venal; faltam
cláusulas de revisão obrigatória com métricas de impacto distributivo;
ignora-se o efeito regressivo sobre pequenos negócios periféricos; e
projeta-se, como consequência, o incremento de inadimplência e litigiosidade
sem instrumentos permanentes de diferimento e renegociação.
Impõe-se, portanto, correção normativa imediata:
elevação e indexação social das isenções; redução das travas anuais em áreas
vulneráveis, com conjugação de teto percentual e teto nominal em reais;
transição plurianual onde o salto venal superar a mediana; extensão de isenções
a imóveis de interesse social fora de ZEIS mediante critérios objetivos de
renda; regime diferenciado para micro e pequenos estabelecimentos em
periferias; programa permanente de parcelamento com preservação do desconto por
pontualidade; e avaliação anual obrigatória, com participação social e
transparência por distrito. Em síntese, a conformidade do IPTU aos princípios
da capacidade contributiva, da progressividade e da vedação ao confisco exige
contrapartidas calibradas por renda, território e vulnerabilidade, com travas
mais restritivas, isenções ampliadas, transição prudencial e revisão periódica
baseada em evidências, de modo a evitar a intensificação das desigualdades
urbanas e a resguardar o mínimo existencial tributário.
Pedro Alem Santinho
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