terça-feira, 14 de outubro de 2025

PGV 2026: isenções que não isentam; travas que não protegem; a máquina de desigualdade do IPTU em São Paulo

PGV 2026: isenções que não isentam; travas que não protegem; a máquina de desigualdade do IPTU em São Paulo

 

A Câmara Municipal de São Paulo aprovou em primeiro turno, no dia 8 de outubro de 2025, o Projeto de Lei 1130/2025 que atualiza a Planta Genérica de Valores (PGV), estabelecendo novas bases de cálculo para o IPTU a partir de 2026. A proposta, que recebeu 28 votos favoráveis e 19 contrários, traz impactos diferenciados entre os distritos da cidade, com especial gravidade para as regiões periféricas como Anhanguera.

Distrito Anhanguera: Vulnerabilidade Social e Alto Impacto Tributário

O distrito de Anhanguera, localizado na zona noroeste da capital, exemplifica as contradições da proposta de atualização da PGV. Com uma população de 75.360 habitantes e densidade populacional de apenas 22 hab/ha, é uma das regiões de menor densidade urbana da cidade. O distrito se caracteriza por alta vulnerabilidade social, figurando no grupo 7 de 8 grupos possíveis no mapa de vulnerabilidade social, onde predominam famílias com baixa renda e escolaridade[4].

Características socieconômicas críticas de Anhanguera:

·         Expectativa de vida média de apenas 59 anos, comparada aos 82 anos do Jardim Paulista - uma diferença de 23 anos

·         IDH de 0,774, classificado como médio, ocupando a 82ª posição entre os distritos paulistanos

·         Alta concentração de famílias com renda até 3 salários mínimos

·         Deficiências significativas em infraestrutura urbana e serviços públicos

Impacto Desproporcionalmente Alto do Reajuste

Anhanguera está entre os distritos que sofrerão os maiores impactos percentuais na atualização da PGV. O valor do metro quadrado de terreno passará de R$ 376 para R$ 573, representando um aumento de 53,6% - o quinto maior entre todos os 96 distritos da capital.

Comparação regional revela desproporção:

·         Anhanguera: aumento de 53,6% (valor baixo de R$ 376/m²)

·         Jardim Paulista: aumento de 64,2% (valor alto de R$ 11.723/m²)

·         Distritos centrais consolidados como República: apenas 12,6% de aumento[3]

Discrepâncias Territoriais da Atualização

A análise da nota técnica da camara de vereadores revela padrões problemáticos na distribuição dos reajustes:

Regiões de alta renda com grandes aumentos percentuais mas alta capacidade de pagamento:

·         Jardim Paulista: 64,2% (R$ 11.723 → R$ 18.943/m²)

·         Itaim Bibi: 57,8% (R$ 7.525 → R$ 11.998/m²)

·         Pinheiros: 57,2% (R$ 8.208 → R$ 12.925/m²)

Regiões periféricas com aumentos desproporcionais à capacidade contributiva:

·         Anhanguera: 53,6% (R$ 376 → R$ 573/m²)

·         Jaraguá: 52,9% (R$ 517 → R$ 780/m²)

·         Perus: 48,9% (R$ 434 → R$ 639/m²)

·         Jaçanã: 43,4% (R$ 862 → R$ 1.242/m²)

Consequências Sociais da Política Tributária

A atualização proposta contradiz princípios de progressividade tributária ao impor aumentos proporcionalmente similares entre distritos com capacidades contributivas drasticamente diferentes. Enquanto moradores do Jardim Paulista têm expectativa de vida de 82 anos e alta renda, residentes de Anhanguera enfrentam expectativa de vida 23 anos menor e concentração de pobreza.

Impactos específicos para Anhanguera:

·         Famílias de baixa renda enfrentarão pressão tributária desproporcional

·         Risco de gentrificação forçada em área já carente de infraestrutura

·         Agravamento das desigualdades territoriais existentes

Medidas Mitigatórias Propostas

O projeto inclui algumas contrapartidas para amenizar os impactos[9][10]:

·         Ampliação da isenção total para imóveis até R$ 150 mil (antes R$ 120 mil)

·         Isenção para proprietários únicos com imóveis até R$ 260 mil (antes R$ 230 mil)

·         Travas de reajuste: máximo 10% ao ano para residenciais e 12% para comerciais

·         Isenção para imóveis em ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) até 2030

Críticas à Metodologia de Cálculo

A oposição na Câmara Municipal, liderada pela bancada do PT, criticou a metodologia da PGV por beneficiar o centro expandido em detrimento das periferias. Segundo análise partidária, a variação acumulada do patrimônio imobiliário da periferia será de 137% entre 2021-2026, enquanto no centro será de 83% no mesmo período.

Necessidade de Tramitação Responsável

O projeto ainda deve passar por audiências públicas e segunda votação antes da sanção do prefeito Ricardo Nunes. A complexidade dos impactos regionais demanda análise cuidadosa dos efeitos sobre a população mais vulnerável, especialmente em distritos como Anhanguera que combinam alta vulnerabilidade social com significativo aumento tributário proposto.

A atualização da PGV, embora necessária para adequar a tributação à realidade do mercado imobiliário, deveria considerar com maior rigor os impactos diferenciados sobre as populações periféricas, garantindo que a modernização tributária não aprofunde as já graves desigualdades territoriais da capital paulista.

 

Da insuficiência das medidas mitigatórias propostas

 

Insuficiência material das faixas de isenção

As isenções totais até R$ 150 mil e a isenção ao proprietário de único imóvel até R$ 260 mil não refletem o patamar atual dos valores venais na cidade, sobretudo após a atualização robusta da Planta Genérica de Valores. Em ampla parcela dos distritos periféricos, inclusive em áreas com padrão construtivo modesto, os valores de referência ultrapassam esses tetos, o que expõe famílias de baixa renda ao efeito tributário sem a devida proteção. Há, portanto, descompasso entre o desenho normativo e a realidade de mercado, o que contraria a progressividade material do imposto.

 

Travas de reajuste ainda elevadas frente à renda e à inflação

 

Os limites máximos de 10 por cento ao ano para imóveis residenciais e de 12 por cento para não residenciais permanecem altos quando cotejados com a evolução da renda domiciliar per capita nas bordas urbanas e com os índices de inflação de serviços essenciais. Em distritos com maior vulnerabilidade social, qualquer patamar de dois dígitos na variação anual do IPTU tende a produzir efeito regressivo, comprimindo o orçamento de famílias que já destinam proporção elevada de renda à moradia e ao transporte.

 

Proteção insuficiente e temporária nas ZEIS

A isenção em Zonas Especiais de Interesse Social até 2030 tem escopo temporal curto diante da magnitude dos reajustes e não alcança domicílios de baixa renda localizados fora de perímetros ZEIS, embora sujeitos a dinâmica semelhante de valorização cartorial. A seletividade territorial do benefício, somada ao prazo exíguo, reduz a efetividade da medida para prevenir deslocamentos forçados e processos de gentrificação.

 

Ausência de calibragem por vulnerabilidade e renda

As contrapartidas carecem de um mecanismo robusto de focalização que considere indicadores objetivos de vulnerabilidade, como cadastro em programas sociais, renda familiar, composição domiciliar e deficiência de infraestrutura urbana. Sem esse recorte, a política tende a beneficiar de forma indistinta imóveis com maior capacidade contributiva, ao mesmo tempo em que deixa descobertas famílias em condição de pobreza tributária.

 

Risco de iniquidade intersetorial e territorial

Ao replicar percentuais uniformes de limitação anual, a proposta ignora assimetrias entre regiões de alta renda e periferias urbanas. O resultado previsível é o agravamento de desigualdades, pois o mesmo percentual de reajuste incide sobre bases econômicas e capacidades de pagamento incomparáveis, afetando mais intensamente quem tem menos renda disponível.

 

Ausência de fase de transição escalonada

Não se prevê fase de transição plurianual com degraus de transição suaves e previsíveis, combinando limite nominal absoluto em reais e limite percentual, para amortecer impactos súbitos. Em especial, nos distritos com salto de valor do metro quadrado, a inexistência de transição escalonada torna o choque fiscal desproporcional.

 

Insuficiência de mecanismos de reparo e revisão

Inexiste cláusula de revisão obrigatória com métricas de impacto distributivo, audiências públicas setoriais e gatilhos automáticos de correção caso os indicadores de onerosidade sobre famílias de baixa renda ultrapassem patamares prudenciais. Na prática, a correção de rumo fica dependente de nova iniciativa legislativa, o que é lento e incerto.

 

Fragilidade do desenho para pequenos negócios periféricos

O teto de 12 por cento para imóveis não residenciais atinge de forma sensível pequenos comércios e serviços de bairro que operam com margens reduzidas. Sem um regime diferenciado para micro e pequenas atividades localizadas em áreas vulneráveis, a medida pode desestimular o comércio de proximidade e o emprego local.

 

Efeitos sobre adimplência e litigiosidade

A combinação de bases venais reajustadas com travas elevadas tende a elevar inadimplência e contencioso tributário, transferindo custo administrativo à municipalidade e insegurança às famílias. A ausência de instrumentos de diferimento com preservação do desconto por pontualidade e de programas permanentes de renegociação agrava o problema.

 

Propostas de aprimoramento normativo

a. Elevação e indexação social das faixas de isenção, com atualização anual automática por indicador de renda e por variação do valor venal mediano por subprefeitura.

b. Introdução de desconto progressivo vinculado à renda familiar e à condição de único imóvel, com aplicação automática para inscritos no Cadastro Único e para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda.

c. Redução dos tetos de variação anual para 5 por cento em residenciais e 7 por cento em não residenciais situados em áreas de alta vulnerabilidade, com cláusula de prevalência do menor entre o percentual e um teto nominal em reais por metro quadrado.

d. Transição plurianual de quatro a cinco exercícios nos distritos com saltos percentuais acima da mediana, com degraus de aplicação gradativa da nova base de cálculo.

e. Regime diferenciado para micro e pequenos estabelecimentos nas periferias, com limitação adicional e possibilidade de crédito tributário condicionado à manutenção de postos de trabalho locais.

f. Isenção integral para imóveis de interesse social fora de ZEIS que atendam critérios de renda e tipologia construtiva, enquanto persistirem indicadores de déficit de infraestrutura essencial.

g. Programa permanente de parcelamento com juros reduzidos, preservando desconto por adimplência e com trilha de educação fiscal, para prevenir inadimplência crônica.

h. Cláusula de avaliação e revisão anual obrigatória, com indicadores de impacto distributivo, participação social e transparência ativa por distrito.

É preciso ir a luta contra essa medida

Conclui-se que as medidas anunciadas, tal como estruturadas, são materialmente insuficientes para neutralizar a carga tributária adicional decorrente da atualização da PGV em territórios de baixa capacidade contributiva. As faixas de isenção não refletem os valores venais correntes; as travas anuais de 10 por cento para imóveis residenciais e 12 por cento para não residenciais permanecem elevadas quando confrontadas com a renda disponível nas periferias e com a inflação de serviços essenciais; a isenção restrita às ZEIS, com horizonte até 2030, revela escopo territorial e temporal limitados; inexiste focalização robusta por renda e vulnerabilidade; não há transição plurianual escalonada para amortecer saltos de valor venal; faltam cláusulas de revisão obrigatória com métricas de impacto distributivo; ignora-se o efeito regressivo sobre pequenos negócios periféricos; e projeta-se, como consequência, o incremento de inadimplência e litigiosidade sem instrumentos permanentes de diferimento e renegociação.

Impõe-se, portanto, correção normativa imediata: elevação e indexação social das isenções; redução das travas anuais em áreas vulneráveis, com conjugação de teto percentual e teto nominal em reais; transição plurianual onde o salto venal superar a mediana; extensão de isenções a imóveis de interesse social fora de ZEIS mediante critérios objetivos de renda; regime diferenciado para micro e pequenos estabelecimentos em periferias; programa permanente de parcelamento com preservação do desconto por pontualidade; e avaliação anual obrigatória, com participação social e transparência por distrito. Em síntese, a conformidade do IPTU aos princípios da capacidade contributiva, da progressividade e da vedação ao confisco exige contrapartidas calibradas por renda, território e vulnerabilidade, com travas mais restritivas, isenções ampliadas, transição prudencial e revisão periódica baseada em evidências, de modo a evitar a intensificação das desigualdades urbanas e a resguardar o mínimo existencial tributário.

 

Pedro Alem Santinho

 

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